MZBL NA VEJA | Por que nova configuração do TSE tende a privilegiar pacificação política
Cármen Lúcia assume o comando do tribunal com o desafio de continuar trabalho firme de Moraes. Sem excessos.
Por Laryssa Borges
Poucos meses antes da eleição que deu vitória a Lula em 2022, Alexandre de Moraes assumiu a presidência do Tribunal Superior Eleitoral com a convicção de que, apesar dos boatos, não havia qualquer risco de um golpe militar no país. O ministro se fiava na avaliação de que as Forças Armadas e as Polícias Militares, com as quais tinha convivido quando ocupou cargos no governo paulista, jamais embarcariam em uma aventura antidemocrática. Essa certeza duraria pouco. As ameaças recebidas pelos juízes, a difusão em larga escala de notícias falsas que colocavam em dúvida a lisura das urnas eletrônicas e a pregação aberta de que o sistema não era confiável punham a própria democracia em xeque. Foi quando o tribunal se apresentou como anteparo contra essas investidas que, soube-se depois, faziam parte de um delirante plano golpista. De maneira inédita, a Corte instaurou vários procedimentos para punir os abusos. O caso mais famoso, como se sabe, resultou na inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro. Os ministros, também de maneira inédita, impediram um programa de televisão de ir ar, bloquearam perfis em redes sociais e derrubaram páginas na internet — medidas consideradas necessárias diante do cenário conturbado da época, mas também vistas por alguns como exageradas.
No mundo jurídico, há certo consenso de que, em um momento extremamente difícil, poucos conduziriam o TSE de maneira tão satisfatória quanto Alexandre de Moraes. Ao longo de dois anos no comando da Corte, ele suspendeu comunidades de seguidores que pregavam violência eleitoral e costurou uma resolução que determina que fake news já reconhecidas pelo tribunal podem ser tiradas do ar a partir de uma simples canetada do presidente — no caso, ele mesmo. Nas eleições municipais deste ano, a retirada de notícias fraudulentas pode ser feita em um rito sumaríssimo. “Essas medidas foram fundamentais para defender a democracia dos ataques extremistas”, ressalta um ministro do Supremo Tribunal Federal. “Em alguns momentos, ele pode até ter se excedido um pouco, mas o que também precisa ser reconhecido é que nós, magistrados, hoje podemos voltar a andar na rua sem medo de atentados”, completou. Não há dúvidas de que as decisões enérgicas de Moraes no TSE interromperam uma escalada perigosa — e esse certamente será o legado de seu mandato, que termina na próxima semana. Tudo indica que também será o início de uma novo ciclo.
Antes de ser nomeado para o Supremo, Moraes foi promotor de Justiça, secretário de Segurança de São Paulo e ministro da Justiça. De cada um desses postos, ele assimilou uma característica. Não se furta a embates, é persistente e não tem dificuldades em contrariar interesses — características fundamentais para o bom trabalho de um juiz. Na defesa intransigente da democracia, porém, isso acabou por provocar certas rusgas com políticos de oposição, que reclamam de perseguição e o elegeram como inimigo. Mas o momento agora é outro. No lugar de Moraes, assumirá a ministra Cármen Lúcia, dona de um perfil mais sóbrio que o do antecessor e que tende a adotar uma postura menos bélica com os demais poderes. “A expectativa geral é de que haja uma distensão em relação aos conflitos que foram gerados pelo enfrentamento político que houve a partir de episódios como o 8 de Janeiro”, avalia o especialista em direito eleitoral Francisco Zardo. “A ministra Cármen tem uma posição mais conciliadora. Mesmo em um cenário de tanta incerteza, se compararmos com a presidência dela no STF, podemos projetar que ela vai tentar apaziguar, ser muito mais discreta e contida na relação com os poderes”, completa Raphael de Matos Cardoso, doutor em direito do Estado e especialista em direito eleitoral.
Os primeiros sinais de contenção já haviam batido às portas do TSE antes mesmo da saída de Moraes, quando o tribunal suspendeu no mês passado o julgamento que poderia cassar o mandato do senador bolsonarista Jorge Seif (PL-SC) e determinou a coleta de novas provas antes de decidir se o parlamentar cometeu abuso de poder econômico. Na terça-feira 21, em novo aceno, os ministros, Moraes inclusive, rejeitaram por unanimidade pedidos do PT e do PL para que o senador Sergio Moro (União Brasil-PR) perdesse o cargo por supostas cometidas irregularidades na campanha de 2022. Em ambos os casos, pairava a suspeita de que uma condenação estaria lastreada mais em interesses políticos do que em provas concretas. “O melhor é deixarmos de lado esse espírito de revanchismo, essa polarização exacerbada que muitas vezes embota o nosso raciocínio e impede que nós busquemos convergências em pontos comuns”, disse Moro após o julgamento do TSE. É um aceno de paz importante que parte do outro lado.
Além da ascensão de Cármen Lúcia à presidência, haverá mudanças na composição do TSE. A cadeira de Alexandre de Moraes será ocupada pelo ministro André Mendonça pelos próximos dois anos. Indicado por Jair Bolsonaro, ele engrossará a fileira dos magistrados que privilegiam o princípio de liberdade de expressão frente a remoções sumárias de conteúdo e rejeitam uma interpretação abrangente do que são fake news. Mendonça, aliás, foi um dos primeiros integrantes do Supremo a tecer críticas ao modo de atuação de Alexandre de Moraes tanto no STF quanto na condução da Justiça Eleitoral. Especialistas afirmam que, ao lado do ministro Kassio Nunes Marques, que presidirá o tribunal nas próximas eleições presidenciais e também foi indicado por Bolsonaro, Mendonça vai compor uma maioria que tem interpretações menos duras em relação a certas questões eleitorais.
Quando Cármen Lúcia assumiu pela primeira vez a presidência do TSE, em 2012, a Justiça Eleitoral ainda informatizava os processos judiciais, testava a aplicação da Lei da Ficha Limpa e discutia se o PSD, hoje uma das maiores legendas do Congresso, teria acesso a recursos do fundo partidário. Prioridade do TSE nos dias de hoje, o combate ao uso de deepfakes e fake news para tentar interferir no processo eleitoral já foi elencado como a principal plataforma da futura presidente, que, nos próximos meses, vai coordenar a eleição de prefeitos e vereadores. A disputa municipal é tratada como laboratório para que o TSE saiba como agir no pleito presidencial de 2026, quando tecnologias cada vez mais avançadas deverão ser utilizadas para enganar os eleitores. De saída do tribunal, Alexandre de Moraes mandou um recado aos críticos da Corte por banir conteúdos ilegais: “Eu já falei no TSE que a fase do amor acabou”. Cármen assume o comando do tribunal com o desafio de continuar esse trabalho. Sem excessos.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894
Fonte: Veja
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